Durante séculos, o coração do Cairo, outrora conhecido como Al-Qahira: O Vitorioso, testemunhou uma rica história de tradição, cultura e patrimônio. As ruas estreitas e sinuosas da cidade velha abrigam mesquitas históricas, mercados pitorescos e os túmulos dos ilustres habitantes que outrora percorreram seus caminhos. No entanto, esta riqueza histórica está hoje ameaçada por um ambicioso projeto do governo egípcio: a construção de uma nova auto-estrada que atravessará o coração do Cairo Antigo.
Ao contrário das ruas pitorescas e sinuosas da cidade velha, a nova rodovia será larga, reta e moderna, atravessando importantes locais históricos e culturais. As escavadoras já começaram o seu trabalho, destruindo de forma irreparável instituições culturais como o Darb 1718, um local emblemático de arte e cultura no Cairo. O renomado escultor Moataz Nasreldin viu seu trabalho de 15 anos reduzido a pó no espaço de um dia, apesar dos esforços desesperados para salvar este bastião artístico.
Esta destruição massiva faz parte de um projeto governamental que visa combater o congestionamento crónico da cidade. No entanto, esta solução drástica põe em perigo o patrimônio cultural e histórico do Cairo Antigo, ameaçando mesmo o seu estatuto de Patrimônio Mundial da UNESCO. Mausoléus, tumbas e monumentos que datam de séculos atrás estão sendo demolidos, aumentando o temor de que os vestígios de um passado rico desapareçam.
A história de Yehia Haqqi, escritor egípcio cujo túmulo foi destruído e movido, é emblemática desta onda destrutiva. Diante da pressão da sociedade civil, o governo procurou aliviar as tensões anunciando a criação de um novo cemitério para acomodar os túmulos de personalidades famosas. No entanto, ações concretas demoram a materializar-se, deixando os defensores do patrimônio impotentes face ao ataque das escavadoras.
Neste contexto de destruição e resistência, certos atores da sociedade civil como Hossam Abd El Azeem de Shawahed Masr estão a mobilizar-se para salvar o que ainda pode ser salvo. Ao preservarem as fachadas e os artefatos de locais históricos à beira da destruição, estes heróis sombrios tentam preservar um valioso patrimônio cultural para as gerações futuras.
Perante esta onda de modernização a todo o custo, surge inevitavelmente a questão: qual o preço a pagar pelo progresso? Será realmente necessária a destruição do patrimônio histórico do Cairo Antigo em nome do desenvolvimento econômico? Não deveríamos, em vez disso, procurar um equilíbrio entre preservar o passado e construir o futuro?
Esta luta entre tradição e modernidade, entre conservação e desenvolvimento, levanta questões existenciais sobre a própria identidade de uma cidade e da sua população. Será que o Cairo, com a sua rica história e diversidade cultural, merece ser sacrificado no altar do progresso urbano? Ou haverá forma de conciliar passado e futuro, memória e modernidade, para construir uma cidade onde a história e o progresso andem de mãos dadas?
Em última análise, a destruição do patrimônio histórico no Cairo Antigo surge como um símbolo de um dilema mais amplo que se estende para além das fronteiras do Egito. É o dilema universal entre preservar o nosso passado e construir o nosso futuro, entre honrar a memória dos nossos antepassados e moldar um mundo melhor para as gerações vindouras. É um desafio fundamental que toda sociedade enfrenta e cuja resolução acabará por determinar a própria essência da nossa humanidade.
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